Por Eriksson Denk – A situação de pessoas em condição de vulnerabilidade social parece ter se transformado na principal pauta de Curitiba no final de 2015 e permanece em discussão. Infelizmente, também com foco eleitoral. De um lado, a Associação Brasileira de Bares e Casas Noturnas e alguns comerciantes sugerem que o poder público retire pessoas nessa condição da rua, ferindo uma lei, de julho de 2009: habitar na rua, em qualquer uma, de mansões ou casebres, é um direito de qualquer cidadão brasileiro. Essa higienização que parte do poder privado e também dos novos fascistas quer não leva em conta os altos índices de desemprego registrados nos últimos anos, migrações internas e, inclusive, avanços no setor social da Prefeitura de Curitiba. Uma cidade que atende bem as pessoas nessa condição também atrai homens e mulheres de outras cidades. Ouvi esse relato de um morador do Condomínio Social no final do ano passado.

>>> Notícia sob análise: Os pontos vermelhos no mapa são pessoas vivendo nas ruas de Curitiba

Por outro lado, e aqui se encaixa uma visão do poder público, estão avanços que as panelas não conseguem ler. O fechamento da antiga Central de Resgate, na rua Conselheiro Laurindo, fez parte de uma estratégia baseada na Política Nacional para a População em Situação de Rua, decreto de dezembro de 2009 assinado pelo ex-presidente Lula. Foram abertas novas unidades (são 18 no total, entre oficiais e conveniadas) respeitando as condições impostas no Art. 5º do decreto: atendimento humanizado e universalizado; e respeito às condições sociais e diferenças de origem, raça, idade, nacionalidade, gênero, orientação sexual e religiosa, com atenção especial às pessoas com deficiência.

Dentre as novas casas, estão o Casulo (atendimento de crianças), Casa Feminina e LBT, Casa de Passagem Masculina, Casa do Vovô, Casa do Índio e o Condomínio Social. Esse último, que já recebeu pesquisadores de universidades americanas e um sociólogo espanhol, é projeto pioneiro no país. Pode atender 70 pessoas, que apenas dormem e fazem atividades comuns nesse espaço, e durante o dia trabalham ou estudam. É a primeira vez que Curitiba oferece uma porta de saída, que representa o fim do ciclo do atendimento às pessoas em condição de vulnerabilidade social. Enxugar gelo, como outrora, já não é uma realidade dos anos 2010. No Condomínio, a título de parênteses, os moradores fizeram sua própria Constituição, ou seja, todas as decisões da casa são democráticas, votadas e propostas por todos. Um passo a mais para quem era antes um número no cadastro.

Vem desse contexto minha crítica ao texto “Os pontos vermelhos no mapa são pessoas vivendo nas ruas de Curitiba”, do Livre.jor, dos amigos João Guilherme Frey e José Lázaro Jr, jornalistas de primeira. Como tenho abertura com eles, conversei com o Zé, que já foi meu editor na Banquinho Publicações, e ele me ofereceu esse espaço de contraponto.

O tratamento que o jornalismo de dados dá aos números é fundamental para que a leitura de várias situações seja muito precisa. E, afinal, para que o jornalismo seja proposito para a sociedade. Gastos públicos, acesso à informação, checagem de dados oficiais: o Livre.jor faz jornalismo independente de amarras políticas e comerciais. E também nos lembra diariamente do jornalismo de checagem, tão fundamental e na maioria das vezes esquecido. E que pode dar o Oscar a “Spotlight” no próximo domingo, um filme que mostra o quanto a profissão e sua obra podem ser fundamentais para jogar o holofote em cima de problemas recorrentes e dar voz a quem não tem voz.

Mas, em determinadas ocasiões, os números não explicam com fidelidade a realidade. O problema de usar dados sobre pessoas nessa condição (não são “moradores de rua”, por que a rua geralmente é uma passagem, condição momentânea) é diminuir ainda mais a voz que elas já não têm. Os registros da reportagem mostram que a central telefônica do 156 recebeu 3.967 ligações entre novembro de janeiro deste ano, e a matéria especifica o que foi repassado no atendimento: se se tratava de uma criança, se usava entorpecentes, etc. O texto, a meu ver, é fundamental para traçar um parâmetro de região para esses atendimentos, expor para a sociedade um dado, uma informação, para que ela pressione poderes público e privado. Esses números também revelam outra situação que merece registro: o descontentamento com a situação é latente, tem permeado conversa em todos os elevadores.

Mas esses cardinais não podem ser a principal referência nessa situação. Vai contra toda a designação do poder público nos tratamentos especializados e exerce enorme pressão sobre quem trabalha com pessoas nessa condição. Sou apartidário, mas sincero. No fim do ano eu visitei esses equipamentos e essa é a primeira vez na história que Curitiba efetivamente conhece a população nessa condição, ouve sua demanda, organiza documentação e o cadastro a benefícios sociais como Bolsa Família e abre a possibilidade para esse “passageiro do centro” reinserir-se em sua família ou na sociedade. O centro especializado na praça Osório e a instalação de uma central de inteligência do 156 no Portão também fizeram parte dessa estratégia. As equipes não respondem mais somente aos atendimentos, mas percorrem áreas de concentração populacional, oferecem ajuda. Mão que, reforçando, pode ser negada.

São centenas de educadores e assistentes sociais lutando pela vida e pelo destino dessas pessoas. E, se uma, ao menos uma, conseguir percorrer todo o projeto da Fundação de Ação Social, essa é uma vitória de 7 a 1. Hoje o atendimento chega a MIL pessoas – os três mil pontos vermelhos citados na reportagem podem repetir pessoas.

Nós ainda precisamos levar em consideração que esse é um problema global e essas pessoas são pessoas como nós. Quando a ideia do Condomínio Social surgiu, os vizinhos do bairro onde seria instalado o projeto argumentaram junto ao poder público que eles não teriam “garantia de não-confusão ou contra furto”. E qual a garantia que um “pai de família” pode ter que seu filho não se envolva nisso? Nós sempre nos esquecemos de olhar para dentro de casa.

Os números no jornalismo sempre nos dão noção da gravidade de determinadas situações: são milhões de refugiados sírios (inclusive na rua) migrando para a Europa, milhões de jovens vítimas da violência policial em nossas favelas, milhares de mulheres que morrem vítimas da nossa ignorância. E, ao mesmo tempo, são histórias de famílias, de pessoas que querem falar. É por isso que o jornalismo também vai atrás de personagens: não apenas para dimensionar, espetacularizar, mas para dar voz a quem precisa. É por isso que, nessa situação, eu defendo os números, mas eles precisam de vozes. As planilhas e o Censo, ou até um futuro Censo, falam, mas não são absolutos.

Em dezembro, um senhor de cabelos grisalhos, ao ver a Kombi da FAS, na rua Cândido Lopes, me disse que a solução que encontrou para esse atendimento é: enfileirar todos eles num precipício e empurrar. Um antigo morador de rua, que em dezembro vivia no Condomínio Social, me disse, no mesmo dia, que as assistentes que o atendem lá são como guias para ele reaprender onde pode pisar. Guias têm vida curta, como sabemos: o próximo passo é sempre de quem quer contar uma história.

* OMBUDSMAN POR UM DIA – Esta é a nova seção do Livre.jor, dedicada a receber críticas de jornalistas a notícias elaboradas por nós. É diferente de direito de resposta, pois o que está em questão aqui é o “fazer jornalístico” – a forma profissional de se lidar com informações. Por ser algo especial, não tem periodicidade fixa. Vai acontecer quando algum jornalista solicitar o espaço e, do aceite em diante, é responsabilidade dele propor o debate.

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