Quando a comissão organizadora bateu o olho na lista de 16 inscritos na categoria principal do 3º Prêmio Livre.jor de Jornalismo-Mosca, três grandes grupos se distinguiam de pronto. Como não poderia deixar de ser, as reportagens sobre a pandemia encabeçam a lista. Se a verdade liberta, presidente, muita luz jogada sobre as trevas das 600 mil mortes partiu do trabalho desses jornalistas.
Reuniões secretas do ‘gabinete paralelo’, preferência por cloroquina às vacinas, sigilo centenário sobre a temeridade que foi o período Pazuello no Ministério da Saúde, a triste coincidência entre negacionismo e voto nos grotões… Desse grupo saiu a vencedora, pegando à unha o absurdo da testagem irresponsável de remédios contra a covid-19.
Outro conjunto de concorrentes era formado por gigantescos esforços de organizar esse caos malemolente que é o Brasil, pondo em xeque negócios que se dizem sustentáveis, rejeitando o oficialismo das autoridades políticas e os desmandos com o gasto de recursos públicos em publicidade. Mas pelo visto vai virar tradição nessa premiação emparedar o Judiciário – que foi o nosso segundo lugar, como vocês verão.
E não dá para ignorar a Fiquem Sabendo, que se tornou a principal referência no Brasil de desaprisionamento de dados. Um terço das finalistas tinham ligação direta com o trabalho da agência, passando por temas importantíssimos, nas mais diversas áreas, do aparelhamento da gestão socioambiental ao trabalho escravo de estrangeiros no país. Daí escolhemos uma que usa o trabalho da agência como trampolim para um salto mais alto. Nomes? Manchetes? Logo ali, na tal da lista.
CATEGORIA PROFISSIONAL
1º Lugar – “Hospital da polícia militar do RS testou proxalutamida sem autorização da Anvisa em pacientes com Covid-19”, de Pedro Nakamura, para a Matinal.
https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/reportagem-matinal/proxalutamida-hospital-militar-covid-porto-alegre/
Da banca julgadora: Ninguém colocou em dúvida a grandiosidade dessa reportagem, mas não foi unânime, não, viu? A gente discutiu cada aspecto dela, inclusive esse seu argumento da “apuração negativa” em fontes públicas (leiam abaixo que entenderão). Se o jornalismo é uma comunidade interpretativa, talvez a imprensa não tivesse feito tão sem medo a cobertura da Prevent Senior se não tivesse antes, impelidos pela Matinal, aprendido a denunciar essa barbaridade.
Dos autores: O trabalho em fontes públicas, na verdade, foi um levantamento de ausências (fui até os confins do SEI da Anvisa, levantei dados em redes sociais, catei números de protocolo e chequei um a um nas plataformas da Conep, mas nada apontava rastro de nada), sendo que pesquisas clínicas exigem uma série de autorizações e procedimentos que simplesmente não foram encontrados pela reportagem. Com isso, se reforçava o caráter clandestino do experimento.
2º Lugar – “Inocentes presos, radiografia das prisões injustas e quem são as suas vítimas”, Artur Rodrigues, Rogério Pagnan e Rubens Valente, para a Folha de São Paulo.
https://temas.folha.uol.com.br/inocentes/
Da banca julgadora: Se o jornalismo não emparedar o Judiciário, ninguém mais irá. Não há poder mais opaco no Brasil que os tribunais e seus escaninhos. Mas não basta gritar contra os portões. É preciso estruturar a crítica, embasá-la e apresentá-la de forma contundente – bem desse jeito que a Folha de São Paulo fez, tornando essa reportagem um caso digno de estudo nos cursos de jornalismo do país.
Dos autores: Logo após a publicação, o esforço investigativo levantou o debate sobre o tema e trouxe argumentos para uma discussão mais rica a respeito das injustiças no país. O Supremo Tribunal Federal criou um grupo de trabalho para definir protocolos para reconhecimentos pouco tempo depois, uma demanda de diversos grupos de direitos humanos e assunto tratado na reportagem. Além disso, após passar sete anos preso sem provas, o trabalhador rural José Aparecido Alves Filho teve seu processo anulado pelo ministro Edson Fachin, do STF, e foi libertado.
3º Lugar – “Registros mostram 400 filhas pensionistas de militares como sócias de empresas milionárias”, de Judite Cypreste, para o Metrópoles.
https://www.metropoles.com/brasil/registros-mostram-400-filhas-pensionistas-de-militares-como-socias-de-empresas-milionarias
Da banca julgadora: A gente ficou imaginando essa reportagem circulando nos grupos de zap dessas famílias. E todas as discussões sobre as fronteiras do jornalismo que isso provocou, já que a legalidade não raro é usada como anteparo para a injustiça social. Ela reúne tudo que é jornalismo-mosca: um baita esforço de apuração, a coragem de publicar sabendo dos riscos e aquela repercussão que só uma verdade dita reto na cara alcança.
Dos autores: Esta reportagem traz à tona um problema ainda pouco debatido juridicamente no país: o de pensões de militares. Um benefício que visa privilegiar uma parcela da população que, por muitas vezes, não precisa receber nenhum tipo de auxílio governamental. No caso da análise realizada, ela mostra como filhas de militantes sócias de empresas milionárias, ainda fazem uso de dinheiro público para aumentar a renda. A discussão gira em torno da necessidade de manutenção do benefício, levando em consideração a situação atual do país em que vivemos e a sua desigualdade.
Troféu Rastilho
No ano passado, a Livre.jor criou o Troféu Rastilho para premiar a Fiquem Sabendo, que tinha desaprisionado os dados das pensionistas civis do governo federal. Neste ano, a agência finalizou a batalha, ao arrancar do governo federal as informações das pensões pagas a militares… e se inscreveu, buscando o bicampeonato. Mas agora, sem concorrer sozinha. E competindo contra não-jornalistas, já que a categoria agora formalizada aceita projetos incorporados ao ecossistema da comunidade noticiosa.
Deu empate, apesar do único consenso da comissão organizadora é que não teria isso de ficar em cima do muro. Mas explicamos: não há precedente na história desse país para aquilo que a MediaLAB.UFRJ e a Agência Autônoma fizeram, identificando os tiros da polícia, disparados de helicóptero, nas comunidades do Rio de Janeiro. Ano passado, a cidade ganhou a categoria principal, em 2021 vai levar Rastilho. O país só tem prioridades, só que a capital maravilhosa segue sendo o nó górdio dessa porra toda.
Contudo, entretanto, todavia vão ter que aprender a compartilhar a fama, a glória e o dinheiro com a Fiquem Sabendo. Não foi dessa vez que a gente se livrou dessa outra obsessão, que é o trabalho desses intrépidos. E não tinha como premiar a reportagem gerada do desaprisionamento sem incluir mais essa provocação no rol de vencedores do mais acintoso prêmio de jornalismo – até agora – do rolê. Outra razão para o empate é que se da primeira vez não teve Troféu Rastilho, agora temos três. Botamos a contagem em dia.
O bom dessa categoria é que quem não ganhou, basta manter o trabalho rodando e incomodando que no próximo ano vai ter de novo. Fica uma dica, que é investir umas sessões de análise na inscrição: sublinhar os motivos de ser jornalismo-mosca, tornar evidente a repercussão na mídia, expondo todas caneladas nos poderosos.
Troféu Rastilho 2021 – TERRITÓRIOS DE EXCEÇÃO, violação de direitos e uso de helicópteros policiais no Rio de Janeiro.
MediaLab.UFRJ e Agência Autônoma, em parceria com Redes da Maré, Fogo Cruzado, Pista News, Witness e Rede LAVITS.
https://documental.xyz/pt/intervencao
Da banca julgadora: NInguém nunca teria visualizado essa “pauta” se não fosse por vocês e agora parece absurdo que ela não tivesse sido realizada antes. Falem com os vencedores do ano passado, a Lola Ferreira e o Igor Mello, e façam um megazord do mapeamento de vocês com as áreas de milícia. Vai dar boa.
Dos autores: A pesquisa foi utilizada em ações judiciais e apresentada internacionalmente em eventos como o RightsCon. A plataforma é inovadora e permite que a visualização dos dados seja facilmente compreendida por todos que a acessam, mesmo que não conheçam a geografia da cidade.
Troféu Rastilho 2021 – PENSIONISTAS MILITARES, depois de muita briga junto ao Tribunal de Contas da União, foi aberta a “caixa-preta” dos pagamentos de pensão a parentes de militares.
Esforço de desaprisionamento de dados da Fiquem Sabendo.
https://fiquemsabendo.substack.com/p/nova-denuncia-da-fiquem-sabendo-obriga
Da banca julgadora: Já falamos demais sobre a Fiquem Sabendo. Algo que só vocês têm, e que deveria inspirar as outras iniciativas, é dar à repercussão o mesmo empenho destinado à apuração. Isso faz toda a diferença.
Dos autores: Em 14 de janeiro de 2021, fizemos uma nova denúncia ao TCU, mostrando que o governo não cumpriu integralmente a decisão anterior [de divulgar todos os pensionistas], ao omitir os dados dos militares e Banco Central. Em junho de 2021, o TCU acatou também essa nova denúncia e determinou o acompanhamento da matéria por um membro do tribunal até que fossem publicados os pagamentos a pensionistas vinculados ao ao Ministério da Defesa e Bacen; aposentados que passaram à inatividade antes de novembro de 2016; e aposentados do Bacen e servidores militares inativos vinculados ao Exército, Marinha e Aeronáutica.
Categoria Universitária
A pandemia espantou vocês, né, universitários? As três inscrições tem pontos-fortes diferentes. O trabalho do Írion Martins, da UFS, é o pico do que a gente imagina ser um jornalismo-mosca destilado à última gota: um formato pretensiosamente informativo, querendo meter raiva. Mas faltou a demonstração do uso de dados públicos, do direito de acesso à informação. Ganhou uma menção honrosa pelo acinte.
A reportagem da Letícia Morelli, da PUC-PR, é o melhor trabalho inscrito pela instituição até aqui: foi buscar os dados, organizou as informações e marcou uma posição. No 1º Prêmio de Jornalismo-Mosca, venceu um recorte pouco explorado de dados de adoção, em formato de reportagem longa. No 2º, um furo com base em dados públicos. Nesta notícia, faltou correr riscos. Ganhou a menção honrosa pela correção.
O trabalho exaustivo de Jenifer Ribeiro, para a Universidade Positivo, é a primeira iniciativa de desaprisionamento de dados inscrita nesta premiação. Ela balançou a comissão julgadora, só que faltou elaborar as informações de voto dos vereadores numa reportagem daquelas, que escancara algo. O esforço foi tão grande, que faltou mais uma braçada para alcançar a praia. Ganhou a menção honrosa por ser visionária.
MENÇÃO HONROSA – “Curitiba interrompe vacinação contra covid-19 sete vezes por falta de doses”, de Letícia Morelli (PUCPR).
https://www.plural.jor.br/noticias/vizinhanca/curitiba-interrompe-vacinacao-contra-covid-19-sete-vezes-por-falta-de-doses/
Da banca julgadora: A feijoada estava completa, à exceção da pimenta. E é melhor a gente elevar a trave do salto que o mundo real lá fora.
Dos autores: Meu trabalho é ‘Jornalismo-mosca’ porque nasceu da observação da sociedade curitibana, aborda um tema relevante e de interesse público, foi realizada em um ambiente acadêmico e percorreu a lacuna (muitas vezes intransponível) entre os estudantes de jornalismo e os veículos de imprensa, com profissionais da área.
MENÇÃO HONROSA – “TUNNEL LINNER, pra toda vez que chover”, de Írion Martins (UFS).
https://drive.google.com/file/d/1n0ku5h5b1nhB5yf_rZEusWTD4_lpIPZF/view?usp=drivesdk
Da banca julgadora: Isso que você chama de transmídia vai, sim, ser o futuro do jornalismo. Um brinde a isso!
Dos autores: É desse jeito simbólico e metonímico que “Tunnel liner: pra toda vez que chover” desenha o movimento de uma ação política nacional que constrói “túneis de passagem” para atravessar os anos de forma ilesa, em cima de um já velho e falso discurso de progresso. É uma obra que anuncia o que está sempre para acontecer mas, em seu lugar, nesta enxurrada de expectativas, é sempre o vazio e o oposto retrocesso que acontecem.
MENÇÃO HONROSA – “Como os vereadores votam”, de Jenifer Ribeiro (Universidade Positivo).
http://comosvereadoresvotam.com.br/index.html
Da banca julgadora: Aqui não é o MasterChef, mas nos permita dizer que faltou empratar. Com toda essa disposição e visão, o futuro promete.
Dos autores: Esse projeto é jornalismo mosca porque todos os envolvidos foram atrás de dados públicos durante meses e fizeram coleta manual de mais de 2 mil proposições legislativas somente para facilitar e democratizar o acesso a uma informação que, apesar de pública, fica escondida. É jornalismo mosca porque o intuito principal desse site era auxiliar eleitores durante o pleito de 2020 a entenderem os candidatos que já estavam no poder.
PREMIAÇÃO EM DINHEIRO – Graças a quatro doadores, nesta edição serão distribuídos R$ 1.327,00 aos participantes do 3º Prêmio Livre.jor de Jornalismo-Mosca. Será divido assim: o 1º lugar da Profissional fica com 70% e o Troféu Rastilho leva 30%. Entraremos em contato com os responsáveis pelas inscrições na quinta-feira (28).
25 DE OUTUBRO – Hoje faz 46 anos que o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado pela ditadura militar brasileira. Não esquecemos e não esqueceremos.