Dos 57 trabalhos inscritos na categoria Universitária do Prêmio Livre.jor de Jornalismo-Mosca 2024, apenas uma reportagem das 12 finalistas foi uma indicação unânime da Comissão Julgadora. A apuração de Felipe Vaso Pereira, estudante da ESPM, mapeando o descaso do Ministério da Defesa com dezenas de pedidos da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) e da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), se estivesse concorrendo entre os profissionais, figuraria entre as finalistas da categoria principal também. Co-qua-ré!
1º lugar – Categoria Universitária (Prêmio Mosca 2024)
Militares não responderam oficialmente a 152 pedidos de ajuda para os Yanomamis em 2023, de Felipe Vaso Pereira (ESPM São Paulo).
DO AUTOR: Acredito que o trabalho conseguiu muito bem denunciar o Ministério da Defesa, que vem acumulando certo poder desde o governo Temer, ao ser lastreado com dados e documentos oficiais produzidos pelos próprios órgãos envolvidos. Uma declaração do General Heleno me incomodou profundamente desde o início dessa reportagem, [quando] ele praticamente afirma que os Yanomami são um risco à integridade nacional. Mais recentemente, o ministro da Defesa, José Múcio, fez uma fala infeliz em que afirma que os indígenas são um empecilho para a exploração de potássio O que não falta são evidências que mostram que os indígenas não fazem parte de quaisquer que sejam os planos dos militares para o Brasil. E a reportagem traz dados concretos que demonstram isso.
DA COMISSÃO JULGADORA: Ninguém titubeou sobre essa ser a reportagem vencedora, porque requer coragem erguer o dedo para os militares no Brasil. O estudante demonstrou qualidade ao explorar com eficiência uma hipótese investigativa, transformando seus achados em uma manchete objetiva – mas sem abdicar da petulância, daquela canelada bem dada nos poderosos. Não dá para exigir repercussão na categoria Universitária, porque ainda não criamos uma rede nacional capaz de distribuir esse conteúdo, então só temos a torcer para que o prêmio faça com que esses dados circulem uma vez mais na internet. Jornalismo-mosca é isso. Talvez, ao longo da carreira, não dê para sair distribuindo caneladas bem dadas todos os dias, mas quando surgir a oportunidade, e for seguro, ou valer o risco, péin! Pra doer mesmo. Pra fazer a diferença.
2º lugar- Categoria Universitária (Prêmio Mosca 2024)
Tarifa Zero frustra moradores de regiões periféricas: ‘Se não tem ônibus, não adianta’, de Bárbara Aguiar, Ester Nascimento, Mirela Costa e Sarah Kelly (USP).
DOS AUTORES: Com essa reportagem, conseguimos mostrar que uma das grandes apostas para a reeleição de Ricardo Nunes à prefeitura de São Paulo é, na verdade, apenas um carinho depois de muita porrada. Todos os dias, a população de São Paulo sofre com os atrasos e a superlotação, mas Nunes tentou lançar a Tarifa Zero como um amenizador dessa realidade. No texto, mostramos que não é bem assim que o programa funciona [faltam ônibus]. Atuamos como uma mosquinha irritante. Infelizmente, como também somos parte da população sofredora de São Paulo — estudamos, estagiamos e participamos de outros projetos —, ainda não conseguimos adequar o texto aos padrões de publicação da agência parceira do professor da disciplina, e todas as nossas provocações, pelo menos por enquanto, estão contidas na sala de aula.
DA COMISSÃO JULGADORA: A escolha da pauta é o maior mérito da reportagem, que teve a coragem de problematizar uma das últimas “febres” do debate nacional sobre políticas públicas, que é a Tarifa Zero para o transporte público (hoje, por exemplo, o disco mudou e estamos obcecados com o fim da jornada 6×1). Ao aplicar uma visão crítica, o grupo percebeu o impacto positivo da medida na periferia de São Paulo, mas apontou que isto é minorado pela baixa oferta de linhas de ônibus. A manchete escolhida para a reportagem, igual a do vencedor da Categoria Universitária, é objetiva e petulante, como jornalismo-mosca deve ser. Contudo, a construção do texto não foi capaz de evidenciar esses elementos com a mesma nitidez do título. É uma questão de redação jornalística, não de apuração, porque, ao responder o questionário da inscrição, a equipe soube manejar com concisão os dados.
3º lugar – Categoria Universitária (Prêmio Mosca 2024)
Imunidade tributária: Curitiba deixa de arrecadar mais de 46 milhões de reais com Igrejas e Templos religiosos, de Maria Luísa Cordeiro (PUC-PR).
DA AUTORA: Essa reportagem contou com uma apuração exclusiva, resultado de 40 horas de trabalho para montar um banco de dados que levou em conta dois conjuntos de dados diferentes. [A reportagem] é relevante por tratar de um tema tão custoso a todos os cidadãos: a destinação dos impostos pagos. Essa pesquisa não apenas informa o público sobre como o dinheiro público está sendo utilizado, mas também promove debates fundamentais sobre imunidade fiscal, laicidade do Estado e a influência de entidades religiosas no poder público.
DA COMISSÃO JULGADORA: Foi aqui que a Comissão Julgadora atrasou a divulgação do resultado, discutindo se esta reportagem estaria entre as vencedoras ou não, por conta de um detalhe que faz toda a diferença. Quem lê, tem a impressão que as religiões de matriz africana são mais beneficiadas que as cristãs com benefícios fiscais, quando, na prática, isso é só mais um exemplo de racismo institucional (a existência delas é exageradamente mais controlada que a de templos protestantes, por isso o grau de formalização é maior; estima-se que, hoje, em Curitiba, haja 5 mil igrejas evangélicas com alvará pendente). O mergulho no abismo dos dados foi tão profundo, e a pesca tão abundante, que os números empilhados não diferenciam a anchova da sardinha. Dava para ter dividido a reportagem em duas, três, quatro, para explorar cada nuance dos números. Feita esta ressalva, é delicioso ver a PUC-PR publicar uma reportagem que questiona as isenções fiscais dadas às instituições confessionais. Sobrou coragem (da autora, dos professores-orientadores, do jornal-laboratório), por isso mereceu o terceiro lugar.
Menção honrosa – Categoria Universitária (Prêmio Mosca 2024)
Livro-reportagem “Selah – Histórias não contadas dos Meninos de Deus“, de Laura Canarin de Miranda e Julia Magalhães da Costa (UFSC).
DAS AUTORAS: A pauta aborda questões de extrema sensibilidade, passando por casos de abuso sexual, violência e diferentes formas de exploração que moldaram a vida das pessoas aqui entrevistadas desde a infância. As 20 fontes do trabalho ressaltaram muitas vezes o quanto consideram o ato de falar [ser] fundamental para garantir que essa história não seja esquecida, nem jamais se repita, e agradeceram a oportunidade de, pela primeira vez, serem escutadas sem julgamentos e em prol de um trabalho que visava ajudar os sobreviventes e honrar aqueles que nunca puderam falar. A história da Família Internacional ficou escondida embaixo dos olhos de toda a população brasileira por mais de 50 anos. Enquanto crianças sofriam rotinas de violência, abuso e extrema manipulação, a banda dos Meninos de Deus lançava álbuns, fazia shows no Maracanã, e os membros da comunidade se entranhavam por todos os meios mais populares do país.
DA COMISSÃO JULGADORA: A gente não vê a hora do livro-reportagem ser publicado, para essa denúncia repercutir tudo que ela merece. Expor uma seita requer Coragem, e vocês demonstraram Qualidade na decisão de constituir um banco de dados próprio, com entrevistas e pesquisa em documentos de época para embasar a investigação. Nossa dificuldade em fazer de vocês as campeãs foi o formato do livro-reportagem, porque se fosse uma série de notícias o impacto seria enormemente maior. Neste ano, venceu a categoria Universitária quem soube pôr as evidências em primeiro lugar. Quem sabe o livro não vira uma série de reportagens que vocês inscreverão na categoria principal nos próximos anos?
Menção honrosa – Categoria Universitária (Prêmio Mosca 2024)
Os desafios dos centros que acolhem e tratam animais silvestres no Brasil, de Luiza Sant’Ana Vezzá e Lívia Luiza Guedes (ESPM São Paulo).
DAS AUTORAS: Acreditamos que nossa reportagem é “Jornalismo-Mosca”, porque trata-se de um tema delicado, que os responsáveis, aparentemente, não gostariam que fosse investigado ou exposto. Nos deparamos com pedidos de LAI incompletos, prorrogados mais de uma vez, recebendo um deles contendo informações distorcidas sobre o motivo de fechamento do Centro; tentamos contato sem sucesso com: Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Rio de Janeiro, Procuradoria Geral do Rio de Janeiro, funcionários do CETAS Seropédica (impedimento da assessoria de imprensa do Ibama) e Prefeitura do Rio.
DA COMISSÃO JULGADORA: Do ponto de vista técnico, é uma reportagem muito bem executada, com começo, meio e fim, cujos dados podem ser utilizados por movimentos sociais para pleitear mudanças dos órgãos públicos. Nota 10 em Qualidade, mas não dava para ter arriscado mais na manchete e no lide? A nossa insistência com Coragem e Repercussão não é à toa, porque ambas estão interligadas. Se uma reportagem vital para a sociedade, que pode levar o jornalista a danos pessoais, não repercute, ele está duplamente exposto. E, para repercutir, é preciso ser conciso para pinçar aquela evidência que faz a notícia ser incontornável, algo que você não pode “des-ver” depois de ter posto os olhos sobre essa realidade. Teve quem quisesse, na Comissão Julgadora, que esta fosse a vencedora, então a menção honrosa é mais que justa.
Menção honrosa – Categoria Universitária (Prêmio Mosca 2024)
Vila Dique: às margens do progresso, de Ana Terra Firmino, Caroline Rodrigues, Gabriel Silveira Dias e João Antonio da Silva (UFRGS).
DOS AUTORES: A premissa da reportagem não tem foca em dados brutos, já que tanto a comunidade retratada quanto o recorte de populações de risco são temas com dados escassos. Acreditamos que a maior qualidade da apuração está no processo de “desembaraçar” os dados públicos, evidenciando a omissão do poder público ao longo de todo processo.
DA COMISSÃO JULGADORA: Nós concordamos com os autores, que “desembaraçar” dados públicos é jornalismo-mosca, por isso a menção honrosa. Quem lê a reportagem, consegue visualizar o que é a Vila Dique e ter um vislumbre dos problemas de moradia em Porto Alegre, mas é preciso separar aquilo que é jornalismo, e cabe aos jornalistas fazer, daquilo que é historiografia ou luta social propriamente dita. Muita reportagem bonita já contou a trajetória de uma pessoa, de uma ideia, mas quem se sentiu diretamente incomodado com a publicação? Faltou trazer o dilema para algo factual, do hoje, que fosse um call-to-action explícito.
Neste ano, a Comissão Julgadora foi formada pelos jornalistas Alexsandro Ribeiro, João Frey, José Lázaro Jr. e Rafael Martins (as moscas fundadoras da Livre.jor), Na primeira semana de dezembro, a Livre.jor entrará em contato com os autores das reportagens para entregar os certificados, além de fazer o pagamento do prêmio em dinheiro, correspondente a 20% do arrecadado pela agência para o certame deste ano. Se vocês quiserem, peçam, que podemos fazer uma live para discutir a formação do pódio. Não querem? Até o ano que vem!