No Manifesto Mosca, que anima o trabalho da Agência Livre.jor, tem uma frase atribuída ao grego Sócrates. “[Atenas] é como um cavalo de raça, vistoso, mas lerdo, e é preciso uma mosca que o pique e o desperte; eu sou essa mosca. Pois os deuses me colocaram aqui com a incumbência de espevitá-los, despertá-los, persuadi-los e repreendê-los um por um”, é a sentença do filósofo.
O que dizer, então, da reportagem de Judite Cypreste e Camila da Silva, para o G1, que identificou 61 candidatos nas Eleições 2024 com mandados de prisão em aberto? Se as instituições públicas detém esses dados, é obrigação delas antever esse tipo de situação, para não levarem um carão desses, em pleno Jornal Nacional. Picada pelas jornalistas, a vistosa Polícia Federal fez uma operação às pressas para prender esses sujeitos.
Se Sócrates estivesse vivo, aplaudiria essa reportagem! Nós, da Livre.jor, não temos como discordar do velho filósofo. O Estado é lerdo e cabe aos jornalistas repreendê-lo. Por isso, as vencedoras da categoria principal do 6º Prêmio Livre.jor de Jornalismo Mosca são Judite Cypreste e Camila da Silva, que puseram a Polícia Federal para trabalhar! Não teve decisão consensual neste ano, o que decidiu as ganhadoras foi a incontestável repercussão.
A reportagem vencedora do 6º Prêmio Livre.jor de Jornalismo Mosca também evidencia a importância da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) para o ecossistema de controle social do país. Na apuração, as jornalistas consultaram uma ferramenta disponibilizada graças à parceria da Abraji com a Jusbrasil, especializada em pesquisa jurídica. Não e à toa que a Abraji faz parte do Manifesto Mosca. A partir do ano que vem, vai ter um campo na ficha de inscrição para mapearmos o uso dessa e outras ferramentas da Abraji, da Fiquem Sabendo, da Transparência Brasil e outras iniciativas de desaprisionamento de dados!
No pódio do Prêmio Mosca 2024 sobrou coragem e qualidade. Todas as reportagens decidiram pôr o dedo em feridas nacionais, apesar do risco aos jornalistas envolvidos na apuração, que tiveram que suar muito – e abusar da criatividade técnica – para obter informações de inquestionável interesse público. Na lista das menções honrosas, escolhemos sete trabalhos que simbolizam as batalhas do jornalismo-mosca no país, que é evidenciar o que está errado, muito errado.
Vencedores Categoria Profissional – Prêmio Mosca 2024
1º Lugar
61 candidatos disputam eleição com mandados de prisão em aberto
Judite Cypreste e Camila da Silva, para G1
NA VOZ DAS VENCEDORAS: Esse foi o primeiro levantamento desse tipo realizado no país. Ele revelou a falta de integração entre os órgãos de Justiça, que não mantêm uma comunicação eficiente para facilitar o cumprimento de mandados de prisão. Além disso, mostrou a fragilidade do sistema eleitoral, que permite que até mesmo condenados e procurados pela Justiça consigam se candidatar, mesmo que investigados por crimes graves.
DA BANCA JULGADORA: Uma ideia relativamente simples, que é cruzar os dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a base de candidatos da Justiça Eleitoral, exigiu muita perseverança das jornalistas (aporrinhar o CNJ atrás de informações, Python para identificar as coincidências, apuração manual para desambiguar os falsos positivos). Uma ideia tão poderosa que chacoalhou as estruturas da Polícia Federal, porque as instituições brasileiras tiveram sua inépcia denunciada. Coragem para incomodar foragidos e aparato judicial; qualidade para não ter o resultado da reportagem contestado; repercussão de dar inveja a toda classe jornalística.
2º Lugar
A polícia mentiu sobre a chacina do Jacarezinho. Veja como nós provamos isso
Cecilia Oliveira e Caio Barreto Briso, para The Intercept Brasil
NA VOZ DOS VENCEDORES: Em maio de 2021, 28 pessoas foram mortas em uma operação da polícia civil do Rio de Janeiro, a Chacina do Jacarezinho – que levantou muitos questionamentos dada a brutalidade, o número de vítimas e o rápido arquivamento de denúncias. Nossa matéria se enquadra como Jornalismo-Mosca por denunciar a manipulação e a violência do Estado em uma operação policial que acabou em chacina, mostrando a importância de desafiar versões governamentais com provas factuais e evidências concretas. O foco em transparência e responsabilização conecta diretamente com os critérios de coragem, qualidade e repercussão exigidos pela premiação.
DA BANCA JULGADORA: Essa reportagem levou a cobertura jornalística de direitos humanos a outro patamar, ao mobilizar recursos, especialistas e pesquisa documental para reconstruir em 3D como policiais mentiram para “justificar” uma execução durante a Chacina do Jacarezinho. Quantas reportagens serão necessárias para a sociedade brasileira acordar para a necessidade urgente de controle externo à atividade policial? Cadê o Ministério Público, que não se apropria da metodologia do The Intercept Brasil, para dar paz às outras famílias vítimas da violência policial? Dividiu votos na Comissão Julgadora, porque teve coragem e exacerbou em qualidade.
3º Lugar
Tentáculos da milícia
Rafael Soares, Rafael Galdo e Selma Schmidt, série de reportagens para O Globo
VOZ DOS VENCEDORES: “Tentáculos da Milícia” é um projeto que nasce do vácuo de dados produzidos pelo Estado do Rio sobre segurança pública. Não há, no estado do Rio de Janeiro, nenhuma iniciativa pública de produção de conhecimento sobre milícias, nem sequer informações consolidadas sobre seus tentáculos econômicos e sua face “legal” — aquela com a qual o cidadão lida diariamente ao abastecer o carro num posto de gasolina ou fazer a unha no podólogo. Por isso, a equipe do GLOBO resolveu construir sua própria base de dados, usando todos os processos judiciais que tramitam no TJRJ sobre milícias.
DA BANCA JULGADORA: Baita pesquisa documental, que fornece uma fotografia inédita do entranhamento das milícias no cotidiano do Rio de Janeiro, mostrando como as instituições públicas falham repetidamente em coibir as atividades criminosas. Sendo publicada em outubro de 2023, na esteira dos ataques a ônibus na capital fluminense, a série de reportagens certamente ajudou na decisão de federalizar o combate às milícias no Rio de Janeiro, até então visto como um problema local de segurança pública. A coragem é evidente, a qualidade da apuração idem.
MENÇÕES HONROSAS – Prêmio Mosca 2024
É difícil concorrer com as reportagens vencedoras do Prêmio Mosca 2024. A primeira colocada deu nome aos criminosos e botou a Polícia Federal no calcanhar deles. A segunda mobilizou tecnologia para acusar policiais militares de terem executado um jovem, mentindo sobre as circunstâncias do crime para limparem a própria barra. A terceira não focou em indivíduos, mas naquele que é um dos maiores problemas sociais do Rio de Janeiro, que são as milícias e o sobrepreço que elas impõem às atividades básicas nas periferias cariocas. São três casos excepcionais de coragem, qualidade e repercussão. Mas esses também não podem passar em branco:
Mercado de palestras rende cachês de até R$ 50 mil/hora para ministros do Supremo, STJ e TST
Wesley Galzo, André Shalders e Tácio Lorran, série de reportagens para O Estado de São Paulo.
NA VOZ DOS JORNALISTAS: A série de reportagens sobre o mercado de palestras de ministros dos tribunais superiores apresenta de maneira inédita dois fatos conhecidos e preocupantes sobre o Poder Judiciário: a falta de transparência em ações de magistrados e os conflitos de interesses inerentes dessa prática. A reportagem reuniu comprovantes de pagamentos efetuados a 10 autoridades das mais altas cortes do País a partir de dados abertos e consultas direcionadas a bancos de dados de conselhos, autarquias, tribunais e assembleias – documentos que, embora públicos, jamais haviam sido expostos em trabalhos jornalísticos.
DA BANCA JULGADORA: O mundo do lobby no Brasil é um pântano à parte, protegido pela opacidade sobre os dados públicos relacionados às agendas e relacionamentos dos tomadores de decisão. Isso é preocupante no Legislativo, grave no Executivo e escandaloso quando o assunto é o Judiciário. A despeito da má politização recente do tema, é chegada a hora do Brasil encarar a necessidade de uma reforma deste Poder, senão completa, ao menos desses desvãos que são incentivos implícitos ao tráfico de influência e à corrupção.
Política da Seca
Artur Rodrigues, Flávio Ferreira, João Pedro Pitombo, Cristiano Martins, Renata Moura, Eduardo Knapp, Mathilde Missioneiro, Pedro Labigalini, Henrique Santana, Augusto Conconi e Luciano Veronezi, série de reportagens para Folha de S. Paulo
NA VOZ DOS JORNALISTAS: A matéria desmascarou políticos do Centrão que instrumentalizam recursos para combate à seca, mostrando que, na verdade, o que eles fazem é aumentar as desigualdades e favorecer seus redutos eleitorais. A publicação pela Folha provocou repercussões imediatas: a estatal Codevasf criou uma comissão para investigar as irregularidades apontadas, como o armazenamento inadequado de caixas d’água e a venda de equipamentos.
DA BANCA JULGADORA: Seguindo o rastro documental para ir à campo, a equipe da Folha de S. Paulo demonstrou como o jornalismo profissional tem muito a contribuir para a sociedade brasileira, logo deve ser incentivado e apoiado por todos preocupados em imprimir um controle social efetivo aos políticos brasileiros. Na Livre.jor, estamos na torcida para a FSP criar uma editoria de Repercussão, para que esse esforço colossal de apuração não acabe em meros processos administrativos.
“Meu técnico tentou me beijar”: levantamento inédito revela casos de assédio no futebol feminino
Camila Alves, para O Globo
NA VOZ DA JORNALISTA: Não há instituição, departamento ou plano de ação criado para lidar com casos de assédio sexual ou moral no futebol. O levantamento inédito, porém, abriu espaço para que mulheres compartilhem suas histórias, colhendo dados e incitando o debate sobre a violência e discriminação no esporte. Trata-se do primeiro levantamento da história sobre assédio no futebol brasileiro, com dados à nível nacional referentes à violência sexual, moral e à discriminação contra mulheres no esporte. Mostramos que 52,1% das jogadoras ouvidas relataram terem sofrido algum tipo de assédio, seja sexual ou moral, vindo de profissionais com quem trabalham no futebol.
DA BANCA JULGADORA: Se o futebol é a paixão nacional, o machismo é uma das chagas mais vergonhosas do Brasil. A decisão de formar um banco de dados próprio, já que traiçoeiramente as instituições desportivas não coletam, tratam e processam essas informações, tampouco oferecem um canal seguro para as vítimas denunciarem os casos, é puro jornalismo-mosca.
Juristas religiosos se organizam em associações para restringir direito ao aborto
Jane Fernandes e Joana Suarez, para AzMina
NA VOZ DAS JORNALISTAS: A pesquisa foi realizada entre setembro de 2023 a abril de 2024. De caráter exploratório, envolveu o mapeamento inicial: a) da atuação das organizações de juristas religiosos junto ao judiciário, identificando estratégias, temas e argumentos; b) do perfil dos membros da diretoria de duas organizações de juristas religiosos – quem eram e onde atuavam e; c) do perfil decisório de magistrados envolvidos nestas organizações em temas pré-definidos pela pesquisa como gênero na escola, uso de nome social, aborto, entre outros. A reportagem foi republicada por veículos parceiros e teve alto engajamento nas redes sociais.
DA BANCA JULGADORA: Não tem um ditado popular que diz algo do tipo: “se esse fosse um país sério, o povo já estaria nas ruas”? Essa reportagem é um desses casos, igual a outras inscritas no Prêmio Mosca 2024, que mostra como o lobby desregulamentado impacta negativamente a justiça que a Justiça pode efetivamente fazer. Ter ficado de fora do pódio é uma circunstância, porque além de ser jornalismo-mosca, a reportagem de AzMina funciona como notícia-sentinela daquele que certamente logo será um dos principais temas de debate nacional.
O plástico preto e as casas sob risco em Água Fria
Victor dos Santos Moura, Ana Carolina Barros de Sá, Kayo Brennan Ferreira da Silva e Priscilla Maria Melo do Carmo, para Redes de Beberibe
NA VOZ DOS JORNALISTAS: Por meio da Lei de Acesso à Informação, descobrimos que o Recife tem monitorados 17.140 endereços sob risco de deslizamento de terra entre risco baixo e muito alto. O dado foi obtido junto à Secretaria de Infraestrutura do Recife e Defesa Civil do Recife. Para saber onde ficam esses endereços, solicitamos a elaboração de uma lista detalhando bairro, comunidade, logradouro e número. A princípio, o órgão não quis compartilhar e alegou que o pedido feria a Lei Geral de Proteção de Dados. No entanto, entramos com recurso e justificamos o interesse público. A partir desses 17.140 endereços, fizemos um recorte no bairro de Água Fria, chegando a 533 endereços mapeados sob risco alto ou muito alto de deslizamento. Todos os integrantes da equipe têm origem no bairro. É onde o veículo de comunicação surgiu e também o mais populoso da periferia norte do Recife.
DA BANCA JULGADORA: Tem um debate dentro da Banca Julgadora, que ainda não é ponto pacificado, de reservar o terceiro lugar para uma reportagem que não seja de jornalão, para prestigiar o difícil – mas extremamente necessário – jornalismo local. Esta apuração da Rede Beberibe usa dados oficiais, obtidos via LAI, para falar da realidade dos próprios jornalistas. Deve ser uma das primeiras reportagens em vídeo destacadas pela Livre.jor, porque tem um uso muito inteligente do “plástico preto”, como elemento de risco. De tão absurda a situação, ela lembra a tradição literária latinoamericana do realismo fantástico. O fato dos dados estarem embasando um “censo” das famílias em risco, capitaneado por movimentos sociais, é um ótimo exemplo da repercussão que o jornalismo-mosca busca causar.
Fugas em massa são rotina nas unidades da Funase, apontam relatórios
Raphael Guerra, para Jornal do Commercio
NA VOZ DO JORNALISTA: Após várias reportagens factuais mostrando fugas em massa nas unidades da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) de Pernambuco, decidi aprofundar o tema, identificando se essas fugas eram constantes e se ocorriam sempre nos mesmos centros. E foi exatamente isso que foi identificado na pesquisa, desenvolvida a partir de relatórios internos. A publicação da reportagem resultou em inspeções feitas pelo Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), entidade ligada aos direitos humanos. O Ministério Público também avançou nos inquéritos instaurados para apurar a responsabilidade pelas fugas.
DA BANCA JULGADORA: Será que fugas em massa, de forma rotineira, são uma forma daquelas unidades enfrentarem o problema da superlotação? A reportagem não chega a cravar essa hipótese, mas a dúvida paira no ar após a leitura das notícias. Muitas inscrições no Prêmio Mosca 2024 citaram como repercussão a abertura de inquéritos pelo Ministério Público – o que é ótimo, não nos levem a mal – mas neste caso teve, além disso, a diretora da Funase dando entrevista inédita sobre esse “fenômeno”. Nada mais jornalismo-mosca que pôr uma autoridade para assumir sua responsabilidade diante da sociedade. De grão em grão de accountability, a sociedade fica menos desigual.
Prefeitura de Conquista fechou R$70 milhões em contratos com empresa criada há 5 meses
Victória Lobo, para Conquista Repórter
NA VOZ DA JORNALISTA: Inicialmente, o objetivo da pauta era abordar os gastos com obras de infraestrutura nos três últimos anos da atual gestão da cidade de Vitória da Conquista, no interior da Bahia. Isso me levou a descobrir que ela [Consórcio V. Conquist] era uma espécie de irmã mais nova da Liga Engenharia, empreiteira baiana que ficou conhecida nacionalmente a partir de reportagens publicadas em veículos como a Folha por suspeita de integrar o chamado “cartel do asfalto”. Diante da repercussão, a coligação da candidata à reeleição, a prefeita Sheila Lemos, moveu um processo contra uma das chapas (…) [e] também incluiu o Conquista Repórter no processo, acusando-nos de propagar desinformação, e solicitando que a matéria fosse retirada do ar e que ainda pagássemos multa pela veiculação. Durante o processo, contamos com o apoio do Instituto Tornavoz, que financiou os honorários da advogada que realizou a nossa defesa. A Justiça Eleitoral não aceitou a acusação da coligação da prefeita contra o Conquista Repórter, uma vez que todos os dados e informações apresentadas estavam embasadas documentalmente.
DA BANCA JULGADORA: confiram as reportagens finalistas do Prêmio Mosca 2024 para terem certeza que não faltaram denúncias lideradas pela imprensa local, que ousadamente desafiou poderosos, correndo os riscos implicados nessa coragem. Neste caso aqui, que escolhemos para homenagear os demais, fica claro que a qualidade da apuração importa – e importa muito – para proteger os jornalistas do assédio que se segue à publicação da notícia. Também é um exemplo de um dos pilares do jornalismo-mosca, que é escarafunchar os portais de transparência.
Aos premiados e detentores de menções honrosas, a equipe da Livre.jor entrará em contato na primeira semana de janeiro de 2025, para distribuir os certificados e demais prêmios previstos no regulamento. Até o ano que vem!