A série de reportagens assinadas por Juliana Dal Piva e Thiago Herdy, para o UOL, que revelou à sociedade brasileira a quantidade de imóveis comprados pelo clã Bolsonaro em dinheiro vivo, é a grande vencedora do 4º Prêmio Livre.jor de Jornalismo Mosca. Ela disputou contra 23 inscritos, figurou na lista de 14 finalistas e se sagrou a campeã de 2022 por ter combinado à perfeição os três fatores que nós vemos como imprescindíveis: qualidade, coragem e repercussão.

Evidenciar a quantidade absurda de transações imobiliárias em dinheiro vivo da família do atual presidente da República não foi, nem nunca seria, uma missão comum. Na inscrição, Juliana Dal Piva relatou como foi apresentada aos indícios que resultaram na reportagem, ao longo dos últimos quatro anos, até que, com Thiago Herdy, a apuração avançou para cartórios e juntas comerciais. Correr atrás desses documentos irrefutáveis foi a espinha dorsal da apuração. Qualidade é auto-defesa.

A gente queria ser uma mosca na sala quando Piva e Herdy chegaram ao número de 51 imóveis comprados total ou parcialmente com dinheiro vivo.  O frio na espinha de publicar uma reportagem com potencial para abalar as estruturas da política nacional, pois ela crava um ponto de interrogação na narrativa de incorruptíveis, tão necessária à estratégia moralista que o clã usou para subir na vida. Coragem para ir em frente com a reportagem, apesar dos riscos óbvios.

Neste caso, a sociedade brasileira abraçou a história e deu a ela a repercussão que merecia. Nem toda grande reportagem consegue virar o que a série “Dinheiro vivo” se tornou, incorporando-se ao imaginário popular de forma tão nítida. Obviamente, repercussão é sinônimo de reconhecimento pessoal para os jornalistas, mas essa é a parte menos importante. A repercussão protege os repórteres do contragolpe dos poderosos, ao tornar mais caro a eles perseguir os jornalistas por trazerem ao debate público temas socialmente relevantes.

“A reportagem resultou num pedido de censura de Flávio Bolsonaro que deixou a matéria e alguns posts das minhas redes sociais censurados por um dia após a decisão de um desembargador do TJ-DF. Depois de muita cobertura e pressão da imprensa, o STF cassou a decisão”, relatou Juliana Dal Piva na inscrição. “As pessoas têm direito de conhecer a verdade sobre quem é seu presidente”, concluiu. A gente concorda em gênero, número e grau.

Cargos secretos e farra dos CACs
Em segundo lugar no 4º Prêmio Mosca, ficou a série de reportagens de Igor Mello e Ruben Berta, publicadas no UOL, que denunciou um esquema milionário de cargos secretos no governo do Rio de Janeiro. “O escândalo dos cargos secretos teve repercussão nacional e foi o grande assunto da campanha eleitoral para o governo do Rio de Janeiro, sendo citado diversas vezes em todos os debates, sabatinas e entrevistas com os candidatos”, registraram os repórteres na inscrição. Tudo começou com o acompanhamento de diários oficiais, que é puro jornalismo-mosca.

“Além disso, o governador Cláudio Castro, vários de seus secretários e aliados se tornaram alvos de diversas investigações abertas com base nas reportagens: o MP-RJ, a Procuradoria Regional Eleitoral, a PGR e o Tribunal de Contas do Estado abriram investigações com base em nossas reportagens. A investigação do MP-RJ constatou uma série de irregularidades apontadas pelo UOL e gerou uma ação civil pública, que resultou na suspensão de todos os repasses aos programas com cargos secretos”, disseram Mello e Berta. Não vamos nos repetir sobre qualidade, coragem e repercussão.

No terceiro lugar, selecionamos outra série de reportagens, sobre a farra dos CACs no governo Bolsonaro, elaboradas por Raquel Lopes, Constança Rezende e Marcelo Rocha, para a Folha de São Paulo. Além de ser um exemplo fantástico de uso da Lei de Acesso à Informação para constranger as autoridades, a apuração evidenciou os problemas decorrentes da falta de controle sobre os colecionadores de armas, atiradores desportivos e caçadores. É deles a pérola de fazer o Exército admitir que liberou compra de fuzil para um integrante do PCC.

“O tema das armas ganhou relevância por causa das flexibilizações que aumentaram o número desses artigos bélicos em circulação no governo Bolsonaro. Foram 17 decretos, 19 portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei. Além disso, o tema foi central nas eleições deste ano”, enumeraram os autores, na inscrição. Nem precisava. O que une as três reportagens no pódio também é a qualidade e a coragem, mas acima de tudo a repercussão. Elas puseram assuntos na esfera pública, contra a vontade dos poderosos de plantão.

Menções honrosas
O júri selecionou duas menções honrosas em razão da extrema relevância dos temas dessas reportagens. Especial para o TAB UOL, Amanda Rossi, José Dacau e Saulo Pereira Guimarães cruzaram dados públicos para mapear 201 vítimas cujos corpos foram descartados em valas clandestinas no Rio de Janeiro e São Paulo. A abordagem do problema da segurança pública por esse prisma é tão inovadora e chocante que não pode passar em branco e precisa, a exemplo dos primeiros lugares, ser ostensivamente apropriada pela sociedade. Em tempos normais, menção honrosa seria pouco – mas a política nos engoliu nesses últimos anos.

“A Comissão de Direitos Humanos do Senado realizou uma audiência pública para debater os dados trazidos pelo levantamento, com a presença da repórter Amanda Rossi, que assina a reportagem. O material também levou um deputado federal a pedir a relatoria de um projeto de lei que torna crime no Brasil o desaparecimento de pessoas por ação criminosa e tramitava na Câmara dos Deputados desde 2018. Em São Paulo, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa discutiu o problema das valas clandestinas”, registrou Amanda Rossi, na inscrição. Já é um ótimo começo, para um tema que merece muito mais.

Por fim, mas não menos importante, no meio do turbilhão de 2022, a equipe da iniciativa De Olho nos Ruralistas, coordenada por Bruno Bassi, deu nome aos financiadores do lobby do agronegócio no Congresso Nacional e no governo federal. Apresentado no formato de relatório, o conjunto de notícias “Os financiadores da boiada” é algo a ser decorado por quem cobre política em Brasília. “Ainda temos dificuldade em furar a bolha e fazer com que a grande imprensa noticie pautas e denúncias que envolvem grandes atores multinacionais”, registraram na inscrição.

“Esse trabalho é ‘jornalismo-mosca’ justamente por representar um zumbido que não quer ser ouvido. Por denunciar quem são os atores por trás da destruição ambiental que todos se apressam a criticar, mas sem apontar os dedos para a cadeia envolvida. O relatório expõe que por trás da boiada estão as multinacionais. É justamente isso que esse relatório mostra: gigantes como as produtoras de agrotóxicos e sementes transgênicas Bayer, Basf e Syngenta, as processadoras de soja Cargill, Bunge, ADM e Louis Dreyfus; os frigoríficos JBS e Marfrig e indústrias do setor alimentício como Nestlé e Danone”, diz a equipe do De Olho Nos Ruralistas.

Considerações finais
Quando começamos com isso de “jornalismo-mosca”, foi uma jornada para descobrirmos o que queríamos melhorar em nós mesmos como profissionais, e ao mesmo tempo trazer pessoas conosco nesta estrada, avessa ao declaracionismo e à troca de favores com fontes por informação privilegiada. Urgh, argh, nojinho. Nem sempre dá para evitar, mas que seja secundário, nunca o principal. Essa é a discussão que propusemos. Passados quatro anos, e graças ao reconhecimento de vocês, inscritos, nós estamos bastante emocionados e desejosos de agradecer. Muito obrigado.

Na edição deste ano, atrasamos quatro dias a lista de finalistas. Mais dois dias além do prazo para divulgar os vencedores. Talvez tenhamos cometido algumas injustiças. Chegamos a cogitar uma tempestade de menções honrosas, até que um dos nossos jurados (nunca diremos qual) defendeu obstinadamente que o Prêmio Mosca não pode ser igual ao campeonato brasileiro, onde todo mundo ganha alguma coisa. Alguma competição é o sal da vida.

Considerando que a campanha de arrecadação no Catarse superou o limiar dos R$ 2,5 mil, o primeiro lugar ganhará R$ 1.222,35 em dinheiro (50% do total descontadas as taxas do crowdfunding); o segundo lugar terá R$ 488,94 (20%) e o terceiro, R$ 244,47 (10%). Os 20% restantes foram para o Troféu Rastilho (15%) e para a vencedora da categoria Universitária (5%). Parabéns! A equipe da Livre.jor vai entrar em contato nos próximos dias para combinar a entrega.

Lista dos vencedores do 4º Prêmio Livre.jor de Jornalismo-Mosca
(links indicam reportagens que servem de porta de entrada para a série de notícias premiadas).

1º Lugar – Metade do patrimônio do clã Bolsonaro foi comprada em dinheiro vivo
(série de reportagens), de Thiago Herdy e Juliana dal Piva, para o UOL.
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/08/30/patrimonio-familia-jair-bolsonaro-dinheiro-vivo.htm 

2º Lugar – Cargos secretos no governo do RJ (série de reportagens), Igor Mello e Ruben Berta, para o UOL.
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/08/03/justica-suspende-pagamentos-e-contratacoes-secretas-no-governo-do-rj.htm

3º Lugar – A farra dos CACs no governo Bolsonaro (série de reportagens), de Raquel Lopes, Constança Rezende e Marcelo Rocha, para a Folha de S. Paulo.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/07/exercito-admite-que-liberou-compra-de-fuzil-para-integrante-do-pcc.shtml

Menção honrosa – Mortes invisíveis, de Amanda Rossi, José Dacau e Saulo Pereira Guimarães, para o TAB Uol.
https://tab.uol.com.br/edicao/mortes-invisiveis 

Menção honrosa – Relatório Os Financiadores da Boiada, de Alceu Luís Castilho e equipe, para De Olho nos Ruralistas.
https://deolhonosruralistas.com.br/wp-content/uploads/2022/08/Os-Financiadores-da-Destruicao-2022-ptbr.pdf  

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