Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, coalizão formada por 30 organizações em defesa da transparência e da Lei de Acesso à Informação (LAI), vem manifestar publicamente sua preocupação e contrariedade às declarações feitas por Jeferson Dias Barbosa, gerente de projetos e assessor da presidência da Autoridade Nacional de Proteção Dados (ANPD), e Fabrício Lopes, coordenador geral de fiscalização da ANPD, publicadas pela editora Convergência Digital em 25.jul.2023

Na ocasião, manifestando-se a respeito de processos administrativos sancionadores, Barbosa afirmou que “muitas empresas hoje fazem isso, fazem raspagem de dados públicos, mas isso não é permitido. É preciso uma correspondência com a finalidade para a qual o dado foi solicitado. Por exemplo, os dados públicos do Portal da Transparência não podem ser utilizados de qualquer maneira. Então aqui também houve uma sinalização para as empresas que fazem raspagem de dados na internet” e Lopes complementou: “não é só porque está lá que pode ser usado de qualquer maneira”. Ocorre que estas declarações, além de equivocadas por não encontrarem respaldo na legislação vigente no país, também demonstram possível desconhecimento sobre a importância da raspagem de dados como técnica para coleta de dados.

Em primeiro lugar, no sistema jurídico brasileiro, o princípio da legalidade (art. 5º, II, Constituição Federal) é claro em estabelecer que às pessoas privadas, físicas e jurídicas, é permitido realizar qualquer tipo de atividade, exceto aquelas que a legislação proibir expressamente. Nesse sentido, não há atualmente no direito brasileiro lei que proíba a coleta de dados públicos por meio da raspagem de dados. Nem mesmo a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei Federal 13.709/2018) proíbe a utilização dessa técnica. Pelo contrário: quando não for expressamente proibida, a legislação assegura presunção de boa-fé à livre iniciativa (art. 3º, V, da Lei Federal 13.874/2019 – Lei de Liberdade Econômica).

Em segundo lugar, no âmbito do acesso a dados públicos, a legislação é clara em assegurar a qualquer pessoa — física ou jurídica — o direito de acessar de forma automatizada e irrestrita dados e informações publicadas pela administração pública. Nesse sentido, destacam-se:

  1. art. 8º, §3º, III da Lei Federal 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI), que prevê como requisito em sites de órgãos e entidades públicas a possibilidade de acesso automatizado;
  2. art. 25, III da Lei Federal 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que reforça a previsão da Lei de Acesso à Informação, estabelecendo que aplicações de internet do poder público devem ser compatíveis para a leitura humana e o tratamento automatizado das informações;
  3. art. 29, §1º, II e IV da Lei Federal 14.129/2021 (Lei de Governo Digital), que reafirma o dever de o poder público garantir o acesso irrestrito a dados em formato legível por máquina e aberto, sendo seu uso permitido irrestritamente.

Em terceiro lugar, considerando que em nosso país a governança de dados públicos ainda engatinha, a raspagem de dados é uma ferramenta essencial tanto para órgãos públicos quanto para entidades privadas e da sociedade civil. Órgãos como o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral da União e o Ministério Público Federal utilizam a raspagem de sites públicos como forma de realizar auditorias baseadas em dados, tornando mais rápida, econômica e eficiente a atuação do controle público. A Escola Nacional de Administração Pública, por sua vez, inclui a raspagem de dados como conteúdo no currículo de seu curso de ciência de dados para servidores públicos federais. 

Na esfera privada, a raspagem é utilizada por jornalistas para coletar dados e produzir grandes reportagens de impacto onde o governo ainda não disponibiliza, por ausência de recursos ou não priorização, dados estruturados e organizados. Além disso, pesquisadores e empresas utilizam dados obtidos via raspagem para desenvolver soluções inovadoras para problemas sociais, facilitando o acesso a informações relevantes e úteis para a sociedade civil, que até então não contava com estes serviços.

Em quarto lugar, a própria razão de ser do Portal da Transparência é que cidadãos possam acessar dados sobre agentes públicos e sobre o uso de recursos públicos e utilizá-los para qualquer finalidade que não seja expressamente proibida por lei, atendendo à garantia do acesso à informação previsto em Constituição e ao fomento da transparência pública e o desenvolvimento do controle social da administração pública conforme prevê a LAI. Conforme asseverado pelo Supremo Tribunal Federal em diversas decisões vinculantes, o acesso a informações e a transparência são essenciais para a existência e manutenção de um Estado Republicano. Sendo assim, a afirmação de que os dados lá publicados não poderiam ser utilizados de qualquer maneira contraria a presunção de boa-fé e ignora o legítimo interesse do cidadão em usar e acessar essas informações. 

Por fim, destaca-se que atividades de raspagem de dados conforme descritas aqui divergem de práticas realizadas para fins ilícitos ou fraudulentos, como no caso recentemente punido pela ANPD em sua primeira sanção a um agente privado. Nesta situação, a ANPD puniu corretamente o tratamento de dados pessoais que não eram públicos (como os do Portal da Transparência), nem tornados públicos pelo próprio titular, e ocorria sem respaldo legal.

*Esta nota foi publicada originalmente no portal do Fórum de Direito de Acesso. Clique aqui para ir para lá!

Em destaque