Co-qua-ré! Vixe, que todo ano a gente atrasa um pouco para divulgar os vencedores do Prêmio Livre.jor de Jornalismo-Mosca, mas em 2023 foi um abuso. Somente agora, na madrugada do dia 23, dez dias depois do estipulado no regulamento, é que juntamos lé com cré, chegando a um consenso sobre a lista de ganhadores. Formamos um pódio, pinçando cuidadosamente 3 das 27 reportagens inscritas, mas também nos sentimos obrigados a dar cinco menções honrosas.
No ano passado, já tínhamos dado a letra que, jornalismo-mosca que se preze, combina coragem, qualidade e repercussão. Desde que essa iluminação, na forma do mantra COQUARÉ, brilhou nas mentes da banca julgadora, ficou claro que, para subirem no pódio, as reportagens vencedoras teriam que honrar os três quesitos. Neste ano, a linha de corte foi a repercussão. Muitas apurações incríveis, feitas por jornalistas maravilhosos, meteram um “bombou nas redes sociais” nesse item da ficha de inscrição. Também é sobre isso, mas não pode ser somente isto.
Denúncia do genocídio yanomami é a vencedora do Prêmio Mosca 2023
As reportagens assinadas por Talita Bedinelli, Ana Maria Machado e Eliane Brum foram o destaque no quesito repercussão entre as finalistas de 2023, porque a denúncia das mortes por descaso do poder se alastraram pela imprensa e explodiram no ouvido das autoridades. A urgência da situação levou o primeiro escalão do governo Lula para Roraima e resultou na criação de uma força-tarefa do SUS para salvar as vidas restantes do povo originário. A Polícia Federal investiga o ex-presidente Jair Bolsonaro por genocídio.
Nos textos da Sumaúma submetidos à banca julgadora do Prêmio Mosca, as jornalistas mostram como encontraram evidências oficiais do aumento de 29% no número de óbitos por causas evitáveis entre crianças yanomamis de até cinco anos de idade. Utilizando o dado como ponto de partida, souberam dos indígenas e dos médicos que o número está abaixo da realidade, uma vez que as estatísticas oficiais também foram vítimas do descaso com os povos originários. Dos dados públicos à apuração em campo, surgiram fotos chocantes, feitas pelos indígenas e por profissionais de saúde, da piora das condições de vida nas aldeias. Aqui, Sumaúma pontuou no quesito qualidade.
Quanto à coragem, vamos combinar que lançar as bases para uma denúncia de genocídio contra um ex-presidente da República (no caso, Jair Bolsonaro) é mais que suficiente. Com “Não estamos conseguindo contar os nossos mortos” e “Governo Bolsonaro diminuiu acompanhamento médico quando metade das crianças Yanomami estava desnutrida”, Sumaúma bateu com louvor a trinca exigida para subir ao pódio do Prêmio Mosca. No ano passado, o projeto de jornalismo focado na cobertura da Amazônia tinha sido selecionado como finalista, com a reportagem “Por que os garimpeiros comem as vaginas das mulheres Yanomami?”, mas, naquela ocasião, ficou de fora dos selecionados.
A jornalista Talita Bedinelli tinha inscrito as duas reportagens separadamente, mas na triagem a equipe da Livre.jor já decidiu unificá-las, para que competissem juntas, pela similaridade dos assuntos e compartilhamento de propostas. Nesse mesmo momento, Rafael Moro Martins, que é membro da Agência Livre.jor, mas se tornou repórter da Sumaúma no período, foi colocado de fora da banca julgadora, que acabou formada por José Lázaro Jr., João Frey e Alexsandro Ribeiro. Daí em diante, foi só aplicar os quesitos e se entregar aos fatos.
Agência Tatu mostra o que é ser testemunha ocular de uma catástrofe
Estima-se que o afundamento do solo de bairros de Maceió, em razão das atividades de mineração da Braskem, em 2018, afetou mais de 50 mil pessoas, de acordo com o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem. Na reportagem de Karina Dantas, para a Agência Tatu, intitulada “Sem vagas, cemitérios de Maceió enterram 80% dos mortos em cova rasa”, temos um exemplo fantástico do que significa ser uma testemunha ocular de um desastre. Igual fez a Sumaúma, a repórter da Agência Tatu obtém dados públicos, vai a campo e volta com imagens chocantes.
Enquanto na Amazônia, eram crianças indígenas desnutridas que chocavam, agora é o registro de que as vias entre os túmulos foram convertidas em covas na cidade de Maceió. O levantamento cumpre o quesito qualidade, pela inteligência da pauta, que não só provoca a prefeitura da capital do Alagoas a buscar uma solução para a emergência, mas também reaviva as consequências do desastre ambiental associado à Braskem, que é chamada à responsabilidade desses fatos. Só quem vive a realidade do jornalismo regional/local sabe quanta coragem é preciso para apertar essas feridas. No quesito repercussão, a reportagem provocou o Ministério Público a abrir um inquérito sobre as covas rasas.
Quem vigia os vigilantes? Jornal do Commercio chacoalhou a Polícia Civil
A reportagem “Menos de 1% dos boletins de ocorrência pela internet são investigados pela polícia em Pernambuco”, de Raphael Guerra, para o Jornal do Commercio, conquistou o terceiro lugar do Prêmio Mosca 2023. No quesito coragem, ela esfrega na cara da Polícia Civil que a instituição está debochando da população ao oferecer um serviço público “para inglês ver”. Ele usou a Lei de Acesso à Informação para obter os dados, criando um método que pode ser replicado por jornalistas de outros estados que queiram ver se também não estão sendo ludibriados, o que é qualidade mais que suficiente.
Por fim, a repercussão colocou a OAB-PE e Ministério Público na cola da Polícia Civil, que prometeu destacar um funcionário para lidar com o problema de só 0,37% dos 96 mil boletins de ocorrência eletrônicos registrados em 2022 terem sido convertidos em inquéritos policiais. Torcemos para que ele faça as suítes dessa denúncia, atualizando a taxa de conversão semestral ou anualmente. Nossa experiência, aqui no Paraná, mostra que é preciso vários anos para “sensibilizar” as autoridades a melhorarem.
Cinco menções honrosas: geniais em alguns quesitos, mas não em todos
“Klabin atrai investidores com papel e celulose verdes, mas dissimula atividade de mineração milionária”, de Maiara dos Santos Marinho e Naira Hofmeister (Repórter Brasil). A reportagem é um exemplo de como aprofundar a cobertura jornalística de empresas privadas, ao mostrar como a Klabin utiliza uma lacuna da Bolsa de Valores do Brasil para não sujar sua imagem institucional com as atividades minerárias que ela pratica. A banca julgadora, comparando-a com as demais, gostaria de ter visto melhor as consequências da reportagem para a Klabin ou para o controle social da mineração.
“O crime do século”, de Glenda Mezarobba (piauí). Uma ação conjunta da reportagem com a Fiquem Sabendo e com o Instituto Vladimir Herzog trouxe à tona um processo judicial que resultou no reconhecimento pelas Forças Armadas de tortura praticada por militares e contra militares durante os Anos de Chumbo. Com milhares de páginas, o documento estava arquivado no Superior Tribunal Militar, mas agora será mais um tijolo na construção do direito à memória e à verdade.
“SC investiga 43 professores por assédio em escolas e até ida com alunos a motéis”, de Paulo Batistella (NSC/Diário Catarinense). A apuração está baseada na leitura do Diário Oficial do Estado e na percepção do valor-notícia dos processos administrativos registrados nessa riquíssima fonte jornalística. Esta foi a única reportagem inscrita no Prêmio Mosca 2023 estruturada a partir de diários oficiais, cuja leitura crítica está nas raízes da Agência Livre.jor. Vida longa ao escrutínio dos diários oficiais!
“Escravos contemporâneos das cana: o aumento de casos e a responsabilidade do setor”, de Gabrielle Rumor Koster, Renata Bossle, Giully Regina e Lais França (Nova Cana). Trata-se de uma reportagem correta, usando dados públicos sobre esse segmento produtivo, para fazer um raio-x do setor. Se tivesse sido publicada por um jornalão tradicional, já seria interessante, mas quando ela surge em um veículo de nicho, torna-se um clássico instantâneo do jornalismo-mosca. Até porque cita nominalmente as empresas associadas ao trabalho análogo ao da escravidão, que, sei lá, talvez sejam leitoras do portal Nova Cana. Guardadas as proporções, é como se a EBC publicasse, regularmente, um painel dos ministros do governo federal investigados por corrupção. Devia acontecer sempre, mas é raríssimo.
“Roraima lidera taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos”, de Schirlei Alves, Marcella Semente, Victoria Sacagami e Aline Boueri (Gênero e Número). Recomendamos a leitura da reportagem, por ela ter uma proposta de metodologia para investigações sobre estupros de vulneráveis no Brasil. As jornalistas se depararam com dificuldades para obter os dados oficiais, então criaram uma modelagem para superar esse obstáculo, que agora pode ser replicada por mais jornalistas.